
O ano era 2017. La la land (dir. Damien Chazelle) estava no cinema, e eu sai enfurecida da sessão porque Mia e Sebastian não terminaram juntos. Minha raiva foi tanta que, uma semana depois, estava pagando para ver o filme de novo e me enfurecer um pouco mais.
Afinal, em uma história de romance o casal deve terminar junto? Bom, no caso de La la land, Mia e Sebastian não precisavam terminar juntos, porque não é um filme de romance.
Há algum tempo, essa pergunta virou um caos generalizado no Twitter (que a lenda descanse em paz, amém). O que começou com alguém falando sobre o romance no gênero romantasia, terminou com uma confusão em que já não sabia mais se as pessoas estavam falando de romance-gênero ou romance-romântico.
Não sei qual pode ser a sua resposta para essa pergunta (fique à vontade para responder esse e-mail, estamos em um lugar seguro para o debate), mas deixarei a minha, como leitora e como estudante de literatura: sim, se o gênero principal do livro é o romance, o casal deve terminar junto.
E agora vou sustentar o meu argumento.
Romance X Romance
Para começar a minha argumentação, acho válido entendermos a distinção que causou confusão. Um romance pode ser romântico, mas uma história romântica não necessariamente será um romance. E no meio da discussão, essa confusão começou a gerar algumas opiniões no mínimo equivocadas.
Temos o gênero literário romance. Uma prosa narrativa, caracterizada por uma trama longa, desencadeamento de um ou mais arcos, com uma gama alta de personagens que geram a ação da narrativa. Isso é um gênero literário, um formato. É o famoso calhamaço.
O romance nasceu na Grécia. Era considerado um gênero baixo, porque não seguia o padrão de versos da lírica, o gênero de prestígio na época; o romance era escrito em prosa. E, por se tratar de um gênero menosprezado, temos pouco material dessa época, porque ninguém tinha interesse em preservá-lo. Estamos falando da época da expansão do império grego, a prosa foi uma forma de simplificar o texto, e a maioria das histórias eram escritas por pessoas de territórios conquistados e não exatamente gregos, então a própria forma utilizada da língua era mais popular.
E outro fator interessante é que se tratava de um gênero sobre histórias bem açucaradas. Era sobre paixões intensas, almas gêmeas destinadas a ficarem juntas, mas que precisavam superar muitos obstáculos para conquistar isso. Ou seja, na verdade, o romance nasceu sim com histórias românticas; as personagens ficavam literalmente doentes de amor.
O romance como conhecemos hoje, é uma herança do romantismo e uma consequência da modernidade. Durante a era medieval tivemos as novelas de cavalaria, que vão culminar em um velho conhecido nosso: Dom Quixote (Miguel de Cervantes, 1605). Dom Quixote não é uma novela de cavalaria, mas uma referência/paródia a elas; aqui já entramos no romance.
O romantismo foi uma influência importante para o romance moderno, porque a partir da ênfase a emoção e ao individualismo que começamos a ter focalização interna nas personagens. Se antes, na epopeia, eram exaltados os grandes feitos de uma nação, uma história sobre um povo; o romance moderno olha para dentro do indivíduo e se pergunta quem é ele diante das mudanças sociais cada vez mais rápidas (Revolução Francesa, Revolução Industrial, as Grandes Guerras, marxismo). Isso ficou ainda mais forte na passagem do século 19 para o 20, quando tivemos o desenvolvimento da psicanálise.
Então o romance como um gênero literário é um formato. Ao longo da história literária, ele foi se moldando até o que conhecemos hoje.
E temos o gênero mercadológico romance. Mercadológico porque ele serve para vender um livro. Nós escritores, quando vamos vender os nossos livros, não destacamos os pontos principais deles, na intenção de encontrar os leitores ideais? O romance como gênero mercadológico serve para determinar que tal história irá tratar o romântico como um tema central.
Então, nesse contexto, um romance literário pode ser uma história romântica, ele pode ter como trama central o desenvolvimento de um casal. Mas, nem toda história romântica será um romance, porque um conto pode ser romântico, uma novela pode ser romântica. O gênero da narrativa não vai determinar o gênero literário, e vice-versa.
Do que é feito um gênero
Quando falei que um romance literário tem uma grande gama de personagens, talvez você tenha pensado “mas eu li um romance que possuía poucas personagens”. Então nesse caso, não é um romance? Não é bem assim.
Na literatura as coisas não são tão precisas quanto na área das exatas. Julio Cortázar tem um texto intitulado “Alguns aspectos do conto” em que fala sobre as características comuns do conto. E é importante ressaltar quando fala “características comuns”, porque o próprio Cortázar explica que o seu objetivo não é ditar regras sobre o que é ou não é um conto.
Por exemplo, Cortázar fala que o conto é uma narrativa curta em que temos uma crescente na tensão, normalmente ele termina de forma impactante, com uma reviravolta impossível de ignorar. Mas Ernest Hemingway tem um conto em que literalmente só conta o passo a passo de um homem pescando e refletindo sobre a vida; não tem um clímax, não tem uma grande revelação. Da forma como o homem inicia o conto, ele termina. Tchekhov também tem um conto em que ele relata uma noite muito fria de trabalho de um cocheiro, não existe nenhuma reviravolta, é apenas o homem trabalhando e refletindo sobre a sua vida. Novamente: da mesma forma que o protagonista inicia, ele termina.
Essas histórias deixam de ser contos por isso? Não. Ainda são narrativas curtas, que acompanham um único arco curto, têm poucas personagens.
Então os gêneros literários são divisões que comportam histórias que seguem um certo padrão. Quando vamos para os gêneros mercadológicos, não é diferente.
Com um livro de distopia automaticamente vamos chamar a atenção das pessoas que gostam de projeções de um futuro distópico que poderia acontecer. Com um livro de fantasia automaticamente vamos chamar a atenção das pessoas que gostam de uma realidade alternativa, em que a lógica é um tanto diferente da nossa porque possui magia.
E quanto ao livro de romance? Bom, as pessoas vão esperar que o arco principal foque no desenvolvimento de um relacionamento.
Ler o livro pelo final
Durante a discussão, do lado daqueles que defendiam que uma história romântica não tem obrigação de terminar com o casal junto, um dos argumentos mais citados foi: vocês leem o livro pelo final? E, tecnicamente, sim. Todo mundo lê um livro pelo final.
Em uma distopia, ou a história vai terminar com o regime seguindo seu curso normal ou o protagonista vai conseguir derrubá-lo, acredito que não tenha uma terceira opção. Ou o regime acaba ou ele continua.
Em uma fantasia, se o objetivo do protagonista é matar um rei, também só existem duas opções: ou ele vai matar, ou não vai matar. Não existe uma terceira possibilidade. Agora, quais os motivos que não levariam o herói a matar o rei, ou como ele mataria, é o que vamos descobrir durante a leitura.
Em uma história romântica, não é sobre se o casal irá terminar junto ou não. É sobre como eles vão terminar juntos.
Alguns podem pensar: mas o romance pode ser sobre a jornada do casal enquanto juntos, e não sobre eles ficarem juntos.
Voltemos a La la land. Eu falei que a história não tinha a obrigação de terminar com o casal junto, porque não é sobre o romance. A relação de Mia e Sebastian é um ponto importante da trama, mas não é o centro dela. De um lado temos uma atriz tentando a todo custo conseguir seu momento de glória em Hollywood; Mia inicia como uma pessoa quase desacreditada no seu sonho e termina com alguém colhendo os louros da sua persistência. Do outro lado, temos um músico frustrado e que acredita que as pessoas estão perdendo o sentido da música; Sebastian inicia a história quebrado financeiramente e desacreditado, ele termina com a concretização de um sonho e trabalhando com o que ama: música.
A relação de Mia e Sebastian é importante para o crescimento de cada um, no entanto, o que move o enredo é o sonho de cada um, não a vontade de estarem juntos. Na verdade, eles terminam entendendo que o que eles viveram tinha um prazo de validade.
Em histórias que o casal não termina junto, se analisarmos o grande desejo do protagonista (aquele que move a ação da história), não é sobre permanecer com a sua pessoa amada a todo custo. Na verdade, o romance orbita esse desejo essencial.
Trouxe o exemplo de duas histórias em que o romance é o arco principal:
Crepúsculo (Stephanie Meyer): A motivação da Bella é estar com Edward, todos os conflitos da trama interferem diretamente em Bella e Edward ficarem juntos. Primeiro é a insegurança de Edward sobre o fato de ele ser um vampiro e Bella, uma humana; depois surge James com o desejo de matar Bella e assim desafiar Edward. O romance é o fio condutor da história, é por causa da necessidade de Bella e Edward permanecerem juntos que a história acontece.
Vermelho, branco e sangue azul (Casey McQuiston): A história se passa em um contexto de eleições nos EUA, Alex está vivendo um momento de ascensão na sua carreira política, mas isso é um arco secundário. O primeiro plano, aquilo pelo o que Alex realmente luta é seu amor por Henry, o objetivo dele é estar com Henry custe o que custar, inclusive a sua própria carreira. Os conflitos que acontecem, afastam eles, impede que esse grande objetivo seja alcançado. Quando os e-mails são vazados a preocupação primordial de Alex não é com sua carreira, mas como isso afeta a sua relação com Henry.
Em uma história em que o romance é o gênero principal, ela é sobre o que as personagens farão para atingir o seu objetivo central: ficar juntas.
A expectativa
Recentemente a Ias Serafim publicou um vídeo muito bom sobre É assim que acaba (Colleen Hoover) no seu Instagram, em que ela pegou um tweet que ficou bem famoso na época do lançamento do filme. No tweet em questão, a pessoa falava que quando vai recomendar o livro para alguém que ela sabe que não tem gatilhos com violência doméstica, ela não fala que isso está no livro, porque quer que a pessoa ache que é um romance fofo e tenha um choque de realidade junto da protagonista.
Eu pretendo falar sobre esse tema em um outro e-mail, com mais profundidade, porque concordo com cada palavra dita pela Ias. Mas o que quero usar nesse momento é: a expectativa construída em história.
A Ias fala que uma reviravolta não é bem sucedida só por chocar do nada, como é o que o tweet sugere. Uma boa reviravolta é trabalhada ao longo de todo o enredo, não surge do nada.
Eu não tenho problema nenhum com casais terminarem separados. Essa é a vida e a arte imita a vida. Mas de que forma isso foi construído? Minha tendência é acreditar que toda história em que o casal não termina junto, em algum momento, ela nos preparou para isso.
Em La la land entendemos que a prioridade de cada personagem é a realização do seu sonho profissional, nós entendemos que existe a possibilidade de o relacionamento não continuar porque não é desejo essencial das personagens. Por mais que um apoie, como pode, a carreira do outro, o sonho e o relacionamento se chocam o tempo todo. Não tem como as duas coisas coexistirem.
Recentemente um livro chamou a atenção no meio indie, porque as pessoas foram ler achando se tratar de um romance e terminaram em choque. Eu li Cama de gelo (Linda Cipriano) e não teve um único momento durante toda a leitura que parecia se tratar de um romance com o casal sendo feliz no final. A narração nos condiciona a crer que existe algo de muito errado, mesmo quando as personagens estão sendo fofas entre si. A narração nos deixa alerta o tempo todo. E o final impacta, mas não por entregar algo que vem do nada. Ele é lógico, segue aquilo que prometeu. Impacta por ser bizarro mesmo.
Acho até cruel uma história em que estamos 100% envolvidos no desenvolvimento do casal, em que a trama é sobre a aproximação deles, e no final isso nos é arrancado com um golpe de separação. Mesmo que a história queira nos dizer que é o melhor para eles, por que passou o tempo todo nos prometendo que eles ficariam juntos?
⚠️ Spoiler alert!
O que teremos no próximo e-mail: vamos começar um quadro novo. Se a newsletter é sobre o gato escritor, nada mais justo do que um quadro sobre leitura ser “O Gato Leitor”. Vou falar o que achei sobre uma das minhas leituras mais recentes, Sangue fresco (Sasha Laurens, Rocco). E sem spoilers, pode ler sem medo de grandes revelações do enredo. É um texto sincero sobre o que achei da leitura.